domingo, 7 de abril de 2024

Poemas de Abril, Poemas da Liberdade

                                                         As Portas que Abril Abriu 



Era uma vez um país 

onde entre o mar e a guerra 

vivia o mais infeliz 

dos povos à beira-terra. 

Onde entre vinhas sobredos 

vales socalcos searas

 serras atalhos veredas 

lezírias e praias claras 

um povo se debruçava 

como um vime de tristeza

sobre um rio onde mirava 

a sua própria pobreza. 

Era uma vez um país 

onde o pão era contado 

onde quem tinha a raiz 

tinha o fruto arrecadado

onde quem tinha o dinheiro

tinha o operário algemado

onde suava o ceifeiro 

que dormia com o gado 

onde tossia o mineiro

 em Aljustrel ajustado 

onde morria primeiro 

quem nascia desgraçado. 

Era uma vez um país 

de tal maneira explorado

pelos consórcios fabris 

pelo mando acumulado

pelas ideias nazis

pelo dinheiro estragado 

pelo dobrar da cerviz 

pelo trabalho amarrado 

que até hoje já se diz 

que nos tempos do passado 

se chamava esse país 

Portugal suicidado.

 Ali nas vinhas, sobredos,

vales socalcos searas 

serras atalhos veredas

lezírias e praias claras

vivia um povo tão pobre 

que partia para a guerra 

para encher quem estava 

podre de comer a sua terra. 

Um povo que era levado

 para Angola nos porões

 um povo que era tratado 

como a arma dos patrões 

um povo que era obrigado 

a matar por suas mãos

sem saber que um bom soldado 

nunca fere os seus irmãos. 

Ora passou-se porém 

que dentro de um povo escravo

alguém que lhe queria bem 

um dia plantou um cravo. 

Era a semente da esperança 

feita de força e vontade

era ainda uma criança 

mas já era a liberdade. 

Era já uma promessa 

era a força da razão 

do coração à cabeça 

da cabeça ao coração. 

Quem o fez era soldado 

homem novo capitão,

mas também tinha a seu lado 

muitos homens na prisão. 

Esses que tinham lutado

a defender um irmão ,

esses que tinham passado

o horror da solidão

esses que tinham jurado 

sobre uma côdea de pão 

ver o povo libertado 

do terror da opressão.

 Não tinham armas é certo,

 mas tinham toda a razão: 

quando um homem morre perto 

tem de haver distanciação 

uma pistola guardada 

nas dobras da sua opção

 uma bala disparada 

contra a sua própria mão 

e uma força perseguida 

que na escolha do mais forte

faz com que a força da vida

 seja maior do que a morte. 

Quem o fez era soldado 

homem novo capitão,

 mas também tinha a seu lado

 muitos homens na prisão. 

Posta a semente do cravo,

começou a floração 

do capitão ao soldado

do soldado ao capitão. 

Foi então que o povo armado 

percebeu qual a razão 

por que o povo despojado

lhe punha as armas na mão. 

Pois também ele humilhado 

em sua própria grandeza

 era soldado forçado

 contra a pátria portuguesa. 

Era preso e exilado 

e no seu próprio país ´

muitas vezes estrangulado 

pelos generais senis. 

Capitão que não comanda 

não pode ficar calado 

é o povo que lhe manda 

ser capitão revoltado 

é o povo que lhe diz 

que não ceda e não hesite 

– pode nascer um país do ventre duma chaimite! 

Porque a força bem empregue

contra a posição contrária 

nunca oprime nem persegue 

– é força revolucionária!

 Foi então que Abril abriu as portas da claridade 

e a nossa gente invadiu a sua própria cidade. 

Disse a primeira palavra 

na madrugada serena um poeta 

que cantava o povo é quem mais ordena. 

E então por vinhas, sobredos,

 vales, socalcos, searas, 

serras, atalhos ,veredas,

 lezírias e praias claras,

 desceram homens sem medo

 marujos soldados «páras» 

que não queriam o degredo 

dum povo que se separa. 

E chegaram à cidade

 onde os monstros se acoitavam 

era a hora da verdade 

para as hienas que mandavam

a hora da claridade 

para os sóis que despontavam 

e a hora da vontade 

para os homens que lutavam. 

Em idas vindas esperas 

encontros esquinas, praças 

não se pouparam as feras 

arrancaram-se as mordaças 

e o povo saiu à rua 

com sete pedras na mão 

e uma pedra de lua

 no lugar do coração. 

Dizia: soldado amigo, 

meu camarada e irmão 

este povo está contigo

 nascemos do mesmo chão 

trazemos a mesma chama

 temos a mesma ração 

dormimos na mesma cama 

comendo do mesmo pão. 

Camarada e meu amigo

 soldadinho ou capitão 

este povo está contigo

 a malta dá-te razão. 

Foi esta força sem tiros 

de antes quebrar que torcer 

esta ausência de suspiros 

esta fúria de viver

 este mar de vozes livres

 sempre a crescer a crescer 

que das espingardas fez livros 

para aprendermos a ler 

que dos canhões fez enxadas 

para lavrarmos a terra 

e das balas disparadas 

apenas o fim da guerra. 

Foi esta força viril 

de antes quebrar que torcer 

que em vinte e cinco de Abril

 fez Portugal renascer . 

E em Lisboa capital 

dos novos mestres de Aviz 

o povo de Portugal 

deu o poder a quem quis. 

Mesmo que tenha passado

 às vezes por mãos estranhas 

o poder que ali foi dado 

saiu das nossas entranhas. 

Saiu das vinhas, sobredos,

 vales, socalcos, searas, 

serras, atalhos, veredas,

lezírias e praias claras,

onde um povo se curvava

como um vime de tristeza

sobre um rio onde mirava 

a sua própria pobreza. 

E se esse poder um dia 

o quiser roubar alguém 

não fica na burguesia 

volta à barriga da mãe. 

Volta à barriga da terra 

que em boa hora o pariu 

agora ninguém mais cerra as portas que Abril abriu. 

Essas portas que em Caxias 

se escancararam de vez

 essas janelas vazias 

que se encheram outra vez 

e essas celas tão frias 

tão cheias de sordidez 

que espreitavam como espias 

todo o povo português!

Agora que já floriu 

a esperança na nossa terra

 as portas que Abril abriu nunca mais ninguém as cerra. 

Contra tudo o que era velho

levantado como um punho

 em Maio surgiu vermelho 

o cravo do mês de Junho. 

Quando o povo desfilou

 nas ruas em procissão

 de novo se processou

 a própria revolução. 

Mas eram olhos as balas 

abraços punhais e lanças 

enamoradas as alas 

dos soldados e crianças. 

E o grito que foi ouvido

 tantas vezes repetido 

dizia que o povo unido 

jamais seria vencido. 

Contra tudo o que era velho

levantado como um punho 

em Maio surgiu vermelho 

o cravo do mês de Junho. 

E operários, mineiros 

pescadores e ganhões 

marçanos e carpinteiros

 empregados dos balcões

 mulheres a dias, pedreiros ,

reformados sem pensões,

 dailógrafos, carteiros 

e outras muitas profissões 

souberam que o seu dinheiro 

era presa dos patrões. 

A seu lado também estavam 

jornalistas que escreviam

atores que se desdobravam c

ientistas que aprendiam 

poetas que estrebuchavam 

cantores que não se vendiam,

mas enquanto estes lutavam

é certo que não sentiam 

a fome com que apertavam 

os cintos dos que os ouviam.

Porém cantar é ternura 

escrever constrói liberdade

 e não há coisa mais pura 

do que dizer a verdade. 

E uns e outros irmanados 

na mesma luta de ideais

ambos sectores explorados 

ficaram partes iguais.

Entanto não descansavam 

entre pragas e perjúrios 

agulhas que se espetavam 

silêncios boatos murmúrios

risinhos que se calavam 

palácios contra tugúrios

fortunas que levantavam 

promessas de maus augúrios 

os que em vida se enterravam

 por serem falsos e espúrios 

maiorais da minoria 

que diziam silenciosa 

e que em silêncio fazia 

a coisa mais horrorosa: 

minar como um sinapismo 

e com ordenados régios 

o alvor do socialismo 

e o fim dos privilégios. 

Foi então se bem vos lembro 

que sucedeu a vindima 

quando pisámos Setembro 

a verdade veio acima. 

E foi um mosto tão forte 

que sabia tanto a Abril 

que nem o medo da morte 

nos fez voltar ao redil. 

Ali ficámos de pé 

juntos soldados e povo

 para mostrarmos como é 

que se faz um país novo. 

Ali dissemos «não passa!»

 E a reação não passou. 

Quem já viveu a desgraça

 odeia a quem desgraçou. 

Foi a força do Outono

 mais forte que a Primavera 

que trouxe os homens sem dono 

de que o povo estava à espera. 

Foi a força dos mineiros ,

pescadores e ganhões,

 operários e carpinteiros ,

empregados dos balcões,

 mulheres a dias,

 pedreiros, reformados sem pensões, 

datilógrafos, carteiros 

e outras muitas profissões

 que deu o poder cimeiro

 a quem não queria patrões. 

Desde esse dia em que todos

nós repartimos o pão

 é que acabaram os bodos 

— cumpriu-se a revolução. 

Porém em quintas, vivendas ,

palácios e palacetes 

os generais com prebendas 

caciques e cacetetes 

os que montavam cavalos 

para caçarem veados 

os que davam dois estalos 

na cara dos empregados 

os que tinham bons amigos

no consórcio dos sabões 

e coçavam os umbigos 

como quem coça os galões 

os generais subalternos 

que aceitavam os patrões

 os generais inimigos 

os generais garanhões 

teciam teias de aranha

 e eram mais camaleões 

que a lombriga que se amanha 

com os próprios cagalhões. 

Com generais desta apanha 

já não há revoluções. 

Por isso, o onze de Março

 foi um baile de Tartufos 

uma alternância de terços 

entre ricaços e bufos. 

E tivemos de pagar

 com o sangue de um soldado 

o preço de já não estar 

Portugal suicidado. 

Fugiram como cobardes 

e para terras de Espanha 

os que faziam alardes 

dos combates em campanha. 

E aqui ficaram de pé 

capitães de pedra e cal 

os homens que na Guiné 

aprenderam Portugal. 

Os tais homens que sentiram 

que um animal racional

opõe àqueles que o firam

 consciência nacional. 

Os tais homens que souberam 

fazer a revolução 

porque na guerra entenderam 

o que era a libertação. 

Os que viram claramente 

e com os cinco sentidos 

morrer tanta tanta gente 

que todos ficaram vivos.

 Os tais homens feitos de aço 

temperado com a tristeza 

que envolveram num abraço

 toda a história portuguesa.

 Essa história tão bonita 

e depois tão maltratada

 por quem herdou a desdita 

da história colonizada. 

Dai ao povo o que é do povo,

 pois o mar não tem patrões. 

– Não havia estado novo 

nos poemas de Camões! 

Havia sim a lonjura 

e uma vela desfraldada 

para levar a ternura

 à distância imaginada. 

Foi este lado da história

que os capitães descobriram 

que ficará na memória 

das naus que de Abril partiram 

das naves que transportaram 

o nosso abraço profundo 

aos povos que agora deram

novos países ao mundo. 

Por saberem como é 

ficaram de pedra e cal

 capitães que na Guiné 

descobriram Portugal. 

E em sua pátria fizeram 

o que deviam fazer: 

ao seu povo devolveram

 o que o povo tinha a haver: 

Bancos, seguros, petróleos,

 que ficarão a render

ao invés dos monopólios 

para o trabalho crescer. 

Guindastes, portos, navios 

e outras coisas para erguer...

Antenas, centrais e fios 

dum país que vai nascer. 

Mesmo que seja com frio

 é preciso é aquecer

pensar que somos um rio 

que vai dar onde quiser 

pensar que somos um mar 

que nunca mais tem fronteiras 

e havemos de navegar 

de muitíssimas maneiras. 

No Minho, com pés de linho,

no Alentejo, com pão 

no Ribatejo, com vinho 

na Beira ,com requeijão 

e trocando agora as voltas a

o vira da produção 

no Alentejo, bolotas

 no Algarve, maçapão 

vindimas no Alto Douro 

tomates em Azeitão,

azeite da cor do ouro 

que é verde ao pé do Fundão

e fica amarelo puro 

nos campos do Baleizão. 

Quando a terra for do povo 

o povo deita-lhe a mão! 

É isto a reforma agrária 

em sua própria expressão: 

a maneira mais primária 

de que nós temos um quinhão 

da semente proletária 

da nossa revolução. 

Quem a fez era soldado 

homem novo capitão ,

mas também tinha a seu lado 

muitos homens na prisão. 

De tudo o que Abril abriu 

ainda pouco se disse 

um menino que sorriu 

uma porta que se abrisse 

um fruto que se expandiu 

um pão que se repartisse 

um capitão que seguiu 

o que a história lhe predisse

 e entre vinhas, sobredos, vales, 

socalcos, searas, serras, 

atalhos, veredas, lezírias

 e praias claras um povo 

que levantava sobre um rio de pobreza 

a bandeira em que ondulava

 a sua própria grandeza! 

De tudo o que Abril abriu 

ainda pouco se disse 

e só nos faltava agora q

ue este Abril não se cumprisse. 

Só nos faltava que os cães

 viessem ferrar o dente

 na carne dos capitães 

que se arriscaram na frente. 

Na frente de todos nós 

povo soberano e total 

que ao mesmo tempo é a voz 

e o braço de Portugal. 

Ouvi banqueiros fascistas ,

agiotas do lazer ,

latifundiários machistas 

balofos verbos de encher 

e outras coisas em "istas"

 que não cabe dizer aqui 

que aos capitães progressistas 

o povo deu o poder!

 E se esse poder um dia

 o quiser roubar alguém 

não fica na burguesia 

volta à barriga da mãe! 

Volta à barriga da terra 

que em boa hora o pariu a

gora ninguém mais cerra as portas que Abril abriu! 

JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS, Lisboa, Julho-Agosto de 1975. [Lisboa, Ed. Comunicação, 1975]



 O Futuro 

Isto vai meus amigos isto vai 

um passo atrás são sempre dois em frente 

e um povo verdadeiro não se trai 

não quer gente mais gente que outra gente. 


Isto vai meus amigos isto vai

 o que é preciso é ter sempre presente 

que o presente é um tempo que se vai 

e o futuro é o tempo resistente. 


Depois da tempestade há a bonança 

que é verde como a cor que tem a esperança 

quando a água de Abril sobre nós cai. 


O que é preciso é termos confiança 

se fizermos de Maio a nossa lança

 isto vai meus amigos isto vai.


 JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS, in “O Sangue das Palavras”, 1979. [“Ary dos Santos: Vinte Anos de Poesia”, Círculo de Leitores, 1983] 



A Fábrica 

Da alavanca ao tear da roda ao torno 

da linha de montagem ao cadinho 

do aço incandescente a entrar no forno 

à agulha a trabalhar devagarinho.


 Da prensa que se fez para esmagar 

à tupia no corpo da madeira do formão 

que nasceu a golpear 

à força bruta duma britadeira. 

Do ferro e do cimento até ao molde 

que é quase um esgar de plástico sereno 

do maçarico humano que nos solde 

à luz da luta e não do acetileno 


nasce este canto imenso e universal 

sincopado enérgico fabril 

sereia que soou em Portugal 

à hora de pegarmos por Abril. 

Transformar a matéria é transformar 

a própria sociedade que nós fomos 

ser operário é apenas saber dar 

mais um pouco de nós ao que nós somos. 


Um braço é muito, mas por si só não chega 

por trás da nossa mão há uma razão 

que faz de cada gesto sempre a entrega 

de um pouco mais de força. De mais pão. 


Estamos todos num único universo 

e não há uns abaixo outros acima, 

pois se um poema é uma obra em verso 

um parafuso é uma obra-prima. 


Operários das palavras ou do aço 

da terra, do minério, do cimento,

 em cada um de nós há um pedaço 

da força que só tem o sofrimento. 


Vamos cavá-la com a pá das mãos

 provar que em cada um nós somos mil 

é tempo de alegria, meus irmãos,

é tempo de pegarmos por Abril. 


JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS, in “Obra Poética”, Lisboa, Ed. Avante, 1994.