Desde que se lembrava de existir, que fazia malabarismo.
Nasceu no circo, viveu o lado sombrio e luminoso da itinerância incerta. Com
cinco anos já dominava, como se o seu olhar hipnotizasse as peças obedientes,
quatro malabares. Agora, com vinte e oito anos, fazia voar dez malabares,
sempre vestido de palhaço, camisola desgastada às riscas horizontais brancas e
pretas, calças excessivamente largas, curtas e rotas, suspensórios pretos, do
mesmo negrume que lhe enovoava as calças oscilantes e a alma hirta.
Rosto
pintado de branco, nariz vermelho preso por elásticos já gastos, losangos
pretos em redor dos olhos. Boca pintada de um vermelho sangue. Ah! E o chapéu…o
chapéu que nunca usava, pois jazia sempre no chão, à espera da moeda que não
caía. “Podiam, pelo menos, dar-me uma moeda por ser, afinal, o homem invisível”
pensava ele, enquanto passos apressados se cruzavam diante de si, numa total
indiferença. E os malabares voavam no ar…para nada!
Voltava
para casa sem nada, havia fome e raiva nos olhos da mulher, desilusão e pena
nos olhos dos filhos.
“Arranja mas
é um trabalho como deve ser!” – rugia a mulher, a lembrar os leões do circo da
sua infância. Ele só sabia ser malabarista, ele só queria ser malabarista. A
fome, porém, quer lá saber destes desejos. E, uma vez que, todos os dias, um
pouco da sua dignidade se perdia no ato de apanhar do chão o chapéu vazio,
pensou que podia perder mais um bocadinho e mendigar, na esperança de que um
mendigo fosse mais visível que um malabarista.
Não queria
mendigar na rua. A rua era o seu palco, desde o incêndio do circo. Do lado
direito da sua casa (que estava prestes a ter de entregar ao senhorio), havia
uma mansão que tinha tanto de mau gosto como de tamanho. No jardim só havia
relva, nada de flores. E a mansão erguia-se na sua mistura de cores (roxo,
preto, azul escuro,…), com poucas janelas e os quatro cantos a imitar torres
medievais, com bandeirinhas de um clube de futebol. O malabarista respirou
fundo e foi lá bater à porta. Um mordomo, de fato preto e camisa branca abriu a
porta. De um ar apático passou rapidamente para um olhar indignado. “O que quer
daqui? Saia imediatamente ou chamo as autoridades!” E fechou a porta com um
estrondo ensurdecedor.
O
malabarista-mendigo preferiu ser mesmo invisível.
A luz que
pensara ver ao fundo do túnel era um comboio a vir na sua direção. Nunca a
humilhação o afetara tanto, nem quando, adolescente ainda, o ministro tinha ido
ao circo e ele tinha deixado cair os malabares. Acharam que tinha sido de
propósito, uma palhaçada, e todos se riram… e os ecos das gargalhadas do seu
fracasso inconfessado ainda lhe eram audíveis.
À esquerda
da sua casa (sim, a que estava prestes a ter de entregar ao senhorio, ahhh, se
ao menos a mulher se calasse com isso por uns instantes), havia um barracão.
Tábuas corroídas pelo tempo, telhado em chapa com umas quantas pedras a
pretender segurar a queda que um dia a chapa daria no chão, como os malabares
no dia do ministro. Porém, não caíra ainda. Morava lá (segundo as palavras da
mulher, ditas em tom baixo, para variar, nessa partilha não solicitada de
sabedoria) um estrangeiro, uma velho romeno, provavelmente bruxo, havendo ainda
a teoria de que andava fugido por crimes horríveis…
“Não tenho
nada a perder” – pensou o malabarista – “e tenho curiosidade em conhecer um homem
tão misterioso…deve cheirar a circo.”
De mão
aberta, bateu duas vezes na porta. Esperou. Um velhinho de olhos meigos abriu a
porta que rangia, curvado e de mãos trémulas e convidou-o a entrar. Uma mesa,
uma cadeira, uma poltrona de veludo vermelho esfarrapado. O malabarista
sentou-se na cadeira. O velhinho, a custo, sentou-se na poltrona. Já lhe
custava sentar-se.
- Em que lhe
posso ser útil? – perguntou.
- Sou seu
vizinho. Gostaria de conhecê-lo…
- E que posso
fazer por si? – insistiu.
- Precisa que
lhe dê jeito no telhado? – improvisou o malabarista, que não sabia consertar
nada.
- O telhado
está bom. O seu olhar é que não…
Instalou-se o
silêncio…
- Quer um
copo de vinho? Eu já não posso beber…o fígado… - disse o velho, franzindo o
sobrolho e apontando para uma caixa de cartão que estava no chão e que o
malabarista ainda nem tinha visto.
- Aceito –
respondeu o malabarista, levantando-se, abrindo a caixa e tirando de lá uma
garrafa de vinho, ficando três garrafas empoeiradas na caixa antiga.
O malabarista tirou a rolha. Não havia copo.
- Tem boca
para beber, não tem? – perguntou, a rir, o velho homem.
O
malabarista bebeu diretamente da garrafa e sentiu que nunca provara néctar mais
delicioso, mais inebriante, mais divino do que aquele.
- Já sabe o
motivo de eu sofrer do fígado. – gracejou o homem.
O
malabarista deu mais uns tragos, por ele bebia tudo de uma vez, mas… teve
vergonha, a mesma vergonha que o impediu de pedir dinheiro. Levantou-se, desculpando-se,
estava atrasado.
- Leve a
caixa – exclamou o velhote – leve-a, que a mim não me faz falta.
E o
malabarista agradeceu e levou a caixa.
Chegado a
casa, chamou a mulher, para lhe dizer o quão maravilhoso era aquele vinho. A
mulher duvidou, devia era ter trazido algo de comer, mas lá tirou as garrafas
da caixa e, bem no fundo, com marcas esféricas do vidro que repousara sobre
elas, uma quantidade considerável de notas, das mais valiosas, repousava,
sóbria.
Turma 7ºC (trabalho de plano de texto, textualização e aperfeiçoamento textual)