segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

O Malabarista

 


         Desde que se lembrava de existir, que fazia malabarismo. Nasceu no circo, viveu o lado sombrio e luminoso da itinerância incerta. Com cinco anos já dominava, como se o seu olhar hipnotizasse as peças obedientes, quatro malabares. Agora, com vinte e oito anos, fazia voar dez malabares, sempre vestido de palhaço, camisola desgastada às riscas horizontais brancas e pretas, calças excessivamente largas, curtas e rotas, suspensórios pretos, do mesmo negrume que lhe enovoava as calças oscilantes e a alma hirta.

           Rosto pintado de branco, nariz vermelho preso por elásticos já gastos, losangos pretos em redor dos olhos. Boca pintada de um vermelho sangue. Ah! E o chapéu…o chapéu que nunca usava, pois jazia sempre no chão, à espera da moeda que não caía. “Podiam, pelo menos, dar-me uma moeda por ser, afinal, o homem invisível” pensava ele, enquanto passos apressados se cruzavam diante de si, numa total indiferença. E os malabares voavam no ar…para nada!

            Voltava para casa sem nada, havia fome e raiva nos olhos da mulher, desilusão e pena nos olhos dos filhos.

          “Arranja mas é um trabalho como deve ser!” – rugia a mulher, a lembrar os leões do circo da sua infância. Ele só sabia ser malabarista, ele só queria ser malabarista. A fome, porém, quer lá saber destes desejos. E, uma vez que, todos os dias, um pouco da sua dignidade se perdia no ato de apanhar do chão o chapéu vazio, pensou que podia perder mais um bocadinho e mendigar, na esperança de que um mendigo fosse mais visível que um malabarista. 

            Não queria mendigar na rua. A rua era o seu palco, desde o incêndio do circo. Do lado direito da sua casa (que estava prestes a ter de entregar ao senhorio), havia uma mansão que tinha tanto de mau gosto como de tamanho. No jardim só havia relva, nada de flores. E a mansão erguia-se na sua mistura de cores (roxo, preto, azul escuro,…), com poucas janelas e os quatro cantos a imitar torres medievais, com bandeirinhas de um clube de futebol. O malabarista respirou fundo e foi lá bater à porta. Um mordomo, de fato preto e camisa branca abriu a porta. De um ar apático passou rapidamente para um olhar indignado. “O que quer daqui? Saia imediatamente ou chamo as autoridades!” E fechou a porta com um estrondo ensurdecedor.

            O malabarista-mendigo preferiu ser mesmo invisível.

            A luz que pensara ver ao fundo do túnel era um comboio a vir na sua direção. Nunca a humilhação o afetara tanto, nem quando, adolescente ainda, o ministro tinha ido ao circo e ele tinha deixado cair os malabares. Acharam que tinha sido de propósito, uma palhaçada, e todos se riram… e os ecos das gargalhadas do seu fracasso inconfessado ainda lhe eram audíveis.

             À esquerda da sua casa (sim, a que estava prestes a ter de entregar ao senhorio, ahhh, se ao menos a mulher se calasse com isso por uns instantes), havia um barracão. Tábuas corroídas pelo tempo, telhado em chapa com umas quantas pedras a pretender segurar a queda que um dia a chapa daria no chão, como os malabares no dia do ministro. Porém, não caíra ainda. Morava lá (segundo as palavras da mulher, ditas em tom baixo, para variar, nessa partilha não solicitada de sabedoria) um estrangeiro, uma velho romeno, provavelmente bruxo, havendo ainda a teoria de que andava fugido por crimes horríveis…

         “Não tenho nada a perder”pensou o malabarista  – “e tenho curiosidade em conhecer um homem tão misterioso…deve cheirar a circo.”

          De mão aberta, bateu duas vezes na porta. Esperou. Um velhinho de olhos meigos abriu a porta que rangia, curvado e de mãos trémulas e convidou-o a entrar. Uma mesa, uma cadeira, uma poltrona de veludo vermelho esfarrapado. O malabarista sentou-se na cadeira. O velhinho, a custo, sentou-se na poltrona. Já lhe custava sentar-se.

          - Em que lhe posso ser útil? – perguntou.

          - Sou seu vizinho. Gostaria de conhecê-lo…

          - E que posso fazer por si? – insistiu.

          - Precisa que lhe dê jeito no telhado? – improvisou o malabarista, que não sabia consertar nada.

          - O telhado está bom. O seu olhar é que não…

          Instalou-se o silêncio…

          - Quer um copo de vinho? Eu já não posso beber…o fígado… - disse o velho, franzindo o sobrolho e apontando para uma caixa de cartão que estava no chão e que o malabarista ainda nem tinha visto.

            - Aceito – respondeu o malabarista, levantando-se, abrindo a caixa e tirando de lá uma garrafa de vinho, ficando três garrafas empoeiradas na caixa antiga.

             O malabarista tirou a rolha. Não havia copo.

            - Tem boca para beber, não tem? – perguntou, a rir, o velho homem.

            O malabarista bebeu diretamente da garrafa e sentiu que nunca provara néctar mais delicioso, mais inebriante, mais divino do que aquele.

            - Já sabe o motivo de eu sofrer do fígado. – gracejou o homem.

            O malabarista deu mais uns tragos, por ele bebia tudo de uma vez, mas… teve vergonha, a mesma vergonha que o impediu de pedir dinheiro. Levantou-se, desculpando-se, estava atrasado.

            - Leve a caixa – exclamou o velhote – leve-a, que a mim não me faz falta.

            E o malabarista agradeceu e levou a caixa.

             Chegado a casa, chamou a mulher, para lhe dizer o quão maravilhoso era aquele vinho. A mulher duvidou, devia era ter trazido algo de comer, mas lá tirou as garrafas da caixa e, bem no fundo, com marcas esféricas do vidro que repousara sobre elas, uma quantidade considerável de notas, das mais valiosas, repousava, sóbria.

                                                                                                                          Turma  7ºC (trabalho de plano de texto, textualização e aperfeiçoamento textual)