Antes fosse... o racismo está aí, de garras bem afiadas de fora. Por isso convidamos toda a comunidade escolar a ler a seguinte narrativa, refletir, nimeadamente em família, acerca dos valores inerentes que perpassam a história e detetar as atitudes repreensíveis que, assim haja vontade, podem ser eliminadas de vez!
Capítulo a capítulo, fica o convite: ler, refletir, debater, mudar... na nossa escola, à qual foi atribuído o Selo Escola Sem Bullying,
Na Pele do Outro
Capítulo I
A aluna nova sentou-se ao fundo da
sala: escolhera a mesa mais isolada, não tendo colega de carteira. A professora
não a apresentou formalmente à turma, mas disse o seu nome aquando da chamada.
Quando ela entrou, o Rui tinha-lhe dito “enganaste-te na sala”.
- Edna Inoke.
Edna levantou o braço, timidamente, permanecendo em silêncio. O
Diogo, sarcástico, pôs o braço sobre o colega, o Rui, e fingiu corrigi-lo:
- Afinal não se enganou na sala. Enganou-se no país…
A gargalhada foi quase geral. Eu não me ri… O “então, meninos,”
da professora perdeu-se nas estridências sonoras de risos forçados. Edna não
perdeu a compostura. Fingiu que nada se passara. Entretanto, com a ajuda de uma
régua amarela e de um compasso que pareciam ter sido atingidos por um raio de
uma máquina de aumentar objetos, a professora de matemática desenhava no quadro
figuras geométricas:
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Olhei atentamente as figuras desenhadas no quadro. A professora
indicou os cálculos que pretendia que realizássemos, mas (como não raro me
acontecia) o meu pensamento divagou e vi dois círculos e dois quadrados,
praticamente iguais e, não obstante, diferentes entre si.
De súbito, houve um burburinho. Um problema no quadro elétrico
reduzira à escuridão a sala de aula. Em dezembro, os dias são curtos e – como
diz tantas vezes a minha avó – às seis horas já é de noite. Entre os
gritinhos falsamente estarrecidos de algumas meninas e risadas com pretensões
fantasmagóricas dos rapazes, gerou-se a confusão geral, camuflada pela
escuridão.
- Tenham calma! Tenham calma!... – disse a professora, num tom
denunciador de bastante nervosismo. Mas tal não se justificava: dois
infindáveis minutos depois, a luz voltava.
- Eu vi a luz! – gritou o Pedro, com acentuada pronúncia
brasileira…
Nova risada quase geral. O Diogo não quis que lhe roubassem o
protagonismo. Era sempre ele a fazer a turma rir. Apontou para a Edna e gritou:
- Ainda há uma lâmpada apagada!
Desta vez, de tão sonoras, as risadas tornaram-se quase
assustadoras. Edna manteve-se imóvel, mas respirava muito rapidamente, como se
estivesse com falta de ar. A expressão do rosto não se alterou, mas uma lágrima
teimosa e involuntária deslizou pela sua face. Não me contive:
- Ó Diogo, já nasceste parvo ou tornaste-te parvo com a idade?
- De que lado estás, Carla? – vociferou o Diogo - És favor da pretalhada?
Claro, os teus pais não estão desempregados como os meus…
Não percebi a relação… Nem tive muito tempo para refletir, pois
ouviu-se um sussurro que silenciou a turma:
- Nasci no Porto.
A Edna finalmente falara. Ela percebera algo nas palavras do Diogo
que me tinha escapado.
Deu o toque para fora. Reparei que, em contraste com todos os
colegas (que arrumavam rapidamente o material como se uma pedra gigantesca
viesse a rolar na sua direção, ao estilo do filme Indiana Jones, e lhes restassem
apenas alguns segundos para fugir dali), Edna guardava tudo com calma. Fui ter
com ela:
- Olá! Chamo-me Carla.
- Eu sei.
Falou um pouco friamente e comecei a duvidar se teria sido boa
ideia ter ido falar com ela.
- Queres ser a miúda simpática que não se importa de falar com a
aluna nova que, ainda por cima, é preta…
- Não, - retorqui, num tom desiludido – quero ser apenas uma miúda
simpática. Tal como gosto que sejam simpáticos para mim.
Virei costas, pondo a mochila ao ombro.
- Desculpa, - disse Edna – tive um dia mau. Tu sabes… Estou a
sentir-me mesmo em baixo.
- Li algures que ninguém tem o poder de te fazer sentir mal sem o
teu consentimento.
- Como assim?
- Não podes dar importância a um idiota como o Diogo!... Não tem a
ver contigo, entendes? Seria igual se tivesses uns quilos a mais, ou acne, ou o
cabelo muito oleoso, ou as pernas tortas,… eu sei lá. Ele tem de pegar com
qualquer coisa. Há miúdos que gostam de ser o palhaço da turma. No caso da
nossa turma, é o Diogo.
- Se eu tivesse o cabelo muito oleoso, lavava-o.
Tive vontade de rir, mas a Edna mantinha um ar de tristeza que me
perturbava.
- Sim, por vezes temos o poder de mudar as coisas. Mas devemos
saber o que precisa mesmo de ser mudado.
- Eu gostava de mudar.
- Mas não precisas. A mentalidade mesquinha, preconceituosa e
ridícula de algumas pessoas é que precisa de ser mudada.
- Para ti, é fácil falar…
Uma nuvem de tristeza nublara de novo o olhar de Edna. Decidi
mudar de assunto:
- Queres vir a minha casa para fazermos juntas os TPC’s? –
perguntei, com um entusiasmo exagerado para a situação.
- Se a minha mãe deixar. Vou ligar-lhe…espero que não tenha o
telemóvel desligado. A senhora onde ela trabalha não a deixa fazer ou atender chamadas.
– esclareceu Edna, já de telemóvel na mão - Mas são quase sete horas. Ela sai
às seis e meia.
A conversa foi rápida.
- Posso ir. A minha mãe deixa-me…
Tínhamos trabalhos de casa de Português e de Matemática. Começamos
pelo de Português: elaborar uma minibiografia sobre uma figura célebre. O
copy-paste estava proibido, deveríamos recorrer a várias fontes de informação e
fazer a síntese das indicações recolhidas. Mas o primeiro passo era escolher a
figura central do trabalho…
- Estou sem ideias…- disse a Edna, com o queixo apoiado na mão.
- Podias fazer do Nelson Mandela. – sugeri eu, com entusiasmo.
Parecera-me uma boa ideia. Do olhar de Edna transparecia uma espécie de mágoa.
- Por que não fazes tu sobre o Nelson Mandela?
- Posso fazer. Vi há pouco um filme, o “Invictus”, e cheguei à
conclusão que é um homem espetacular. Só que estou indecisa entre o Nelson
Mandela e a Madre Teresa de Calcutá…Acho que vou mesmo optar pelo Nelson
Mandela.
- Ótimo. Eu vou fazer do Justin Bieber…
- Tu é que sabes…
Uma sensação de desconforto pesava no ar. Mas não durou muito.
Tínhamos de partilhar o mesmo computador e isso tornou o diálogo inevitável.
- Já escolheste a foto do Mandela que queres pôr no trabalho?
Procura-me uma do Justin Bieber…uma recente, já com rastas. Fica mais bonito
assim, não achas? Bem, ele é lindo de qualquer maneira. Este último CD
arrasou…Vê uma foto que não tenha direitos de autor.
- Não te preocupes. Estou no Commons…
As biografias estavam quase prontas.
- Tenho uma enciclopédia sobre pessoas famosas. O teu querido
Justin Bieber não aparece, de certeza, mas deve ter alguma coisa sobre o Nelson
Mandela.
- Vai ver. – respondeu Edna, num tom distraído.
Quando consegui descolar o olhar enlevado da Edna das fotos do
Justin Bieber (havia mais fotos do que texto; era uma fotobiografia com muito
de foto e pouco de biografia), passámos ao TPC de Matemática.
- Temos de calcular a área sombreada de cada figura.
-Não há problema, eu sou perita em Matemática- retorquiu a Edna
-Vamos começar com o retângulo: faz-se Comprimento x Largura. E no quadrado
faz-se Lado x Lado...
-Obrigada, sem ti não seria capaz…
-De nada! – o olhar de Edna começou a sorrir - Sabes…
- O quê?
- Tu és fixe.
- Tu também, se esquecermos o pormenor de gostares do Justin
Bieber.
Rimos as duas. E o tempo cristalizou-se, eternizando-se nesse
instante de um sorriso de amizade...
Capítulo
II
A professora de matemática falava com um entusiasmo tão enérgico
como exclusivo:
- Já falta pouco para a primeira fase das Olimpíadas de
Matemática! Todos os alunos com média igual ou superior a 95% podem e devem
participar!
Isso significava simplesmente que, da turma, só a Edna podia
participar. Ia representar a turma no conjunto de todas as turmas de nono ano.
Aposto que o Diogo não estava contente com isso.
- Uma preta que sabe calcular? Tenta calcular os quilómetros que
te faltam para acertares no país! - mais uma vez o Diogo tinha de intervir.
Desnecessariamente, para mim, mas para os outros pareceu ter muita piada, já
que as risadas eram quase ensurdecedoras. Reparei numa Edna cabisbaixa e tive
de falar:
-Por que não lhe pedes para calcular o tamanho da tua estupidez?
O Diogo olhou para mim surpreendido, pelos vistos nunca ninguém o
tinha contrariado.
-Agora defendes os pretos, é?- questionou-me, de sobrancelha
arqueada.
-É a Edna, mas podia ser outra pessoa qualquer. Mete-te na
tua vida e deixa a minha amiga em paz! - a Edna sorriu com o meu comentário,
enquanto a reação dos meus colegas de turma era indescritível.
-Já chega meninos! Que tal fazeres uma visita ao exterior da sala,
Diogo?-interveio a professora, com o indicador da mão esquerda apontado à porta
da sala.
Ele levantou-se, visivelmente irritado, mas não sem antes lançar
um olhar mortífero a mim e à Edna. Caminhou até ao exterior e, finalmente,
abandonou a sala.
- Edna, tens uma semana para te preparares para as Olimpíadas! Não
precisas de ficar nervosa. Se tiveres dúvidas com alguma coisa na matéria é só
perguntares!
Edna assentiu com a cabeça, mas com uma notável tristeza na sua
face. O toque de saída foi ouvido pela última vez naquele dia.
-Parabéns!
Não ligues ao que eles dizem! Tu és excelente a Matemática, já me provaste
isso. E à professora também. Vais ganhar o concurso, vais ver. Vens fazer
os TPC’s a minha casa outra vez?- perguntei eu, entusiasmada.
Edna sorriu para mim e, mais uma vez, foi falar com a mãe ao
telemóvel. Terminou a chamada e informou-me:
-Posso ir!
-Boa! Hoje só temos TPC's de Inglês, mas se quiseres treinamos um
pouco para o concurso! Que achas?- perguntei, numa tentativa de fazê-la
esquecer o que se tinha passado, pouco antes, com o Diogo.
-Acho
bem!
Começámos
então com o trabalho de casa de Inglês. Edna parecia estar mais à vontade
comigo.
-Bem,
no exercício 1 temos de completar as frases com a question tag correta.- explicou com um ar doutoral.
-Na
primeira frase, acho que é para completar com aren't they…- arrisquei. Edna pareceu não compreender o porquê de
ser esta a resposta, visto que me olhou como se eu tivesse algo na cara (um
macaco no nariz ou restos de alface nos dentes); então, passei a explicar:
-
As question tags servem para reforçar
uma ideia! Se a pergunta está na
negativa tens de torná-la positiva e vice-versa.
Ela lançou-me um olhar confuso.
-Vou
exemplificar com uma primeira frase, só que em português. "O John é
professor, não é?" O primeiro "é" está na positiva, e para
reforçar a ideia, utilizamos a forma negativa na segunda oração.
-Ah,
já percebi! Obrigada! Parece que cada um tem uma matéria em que é naturalmente
bom! Embora estudar e treinar ajude muito, claro.
Depois
do comentário de Edna, terminámos os exercícios e passámos o resto da tarde a
praticar para o concurso. As resoluções dos problemas fluíam naturalmente,
assim como a conversa. O seu raciocínio matemático era verdadeiramente
excecional. Quem sabe? Se calhar, tinha a futura Isaac Newton feminina do meu
lado e nem sabia.
Capítulo
III
-
Estás pronta? - perguntou a professora à Edna, já dentro do autocarro que seguia
em direção ao pavilhão das Olimpíadas. Depois, com um ar algo desolado,
acrescentou:
-
Infelizmente, neste ano, foram poucos os qualificados para as Olimpíadas: 36
alunos apenas! Não sei de onde provém a resistência dos alunos à matemática…
Após
uns segundos de ponderação, a professora assumiu um tom mais informativo.
Parecia ter memorizado a síntese de um regulamento:
-
Nesta semana que passou, foram informando todos os participantes sobre as
regras e sobre a matéria que ia sair na primeira prova. Estás a par de tudo
isto, certo, Edna? – mas não lhe deu tempo para responder - Disseram também,
como bem sabem e por isso estão aqui, que a turma dos alunos selecionados
poderia estar presente, como claque de apoio. Houve quem não pudesse ou não
quisesse vir: a adesão à iniciativa era facultativa. Os prémios só vão ser
anunciados quando se souberem os vinte finalistas. Depois desta etapa
existirão, também, mais duas fases, sendo que, na segunda, restarão dez
finalistas e, na última, apenas dois.
Por
fim, mudou o tom de voz robotizado e falou de modo mais emotivo:
-
E estou certa de que a vencedora vai ser a Edna.
Decidi
juntar a minha voz à voz da professora, para incentivar a Edna.
-Não
te preocupes, tenho a certeza que te vais sair bem! Passaste a semana a
estudar. - disse eu, ao reparar no visível nervosismo da minha amiga.
-
E se eu me esquecer de uma fórmula? –perguntou, cabisbaixa.
-Não
te vais esquecer! Eu estou aqui para te apoiar! E mesmo que não passes à
próxima fase - o que não vai acontecer! - eu vou continuar a ser tua amiga!
-
Obrigada, Carla!
-Sempre
às ordens! – afirmei, fazendo uma pequena continência com a mão direita. Edna
riu e agradeci a mim mesma, mentalmente, por ser palhacinha.
-Ei
preta! Vê lá se não te dá uma branca!- soltou o Diogo, causando risadas em todo
o autocarro. Quando eu ia defender a Edna, para minha surpresa, ela mesma o
faz:
-Não
te preocupes! O único perigo que corro é poder assustar-me com a tua cara!
O
Diogo ficou em silêncio. Houve risinhos contidos e até um “Eiiii, agora
calou-te!”, pronunciado pelo Tiago. Exclamei um "Muito bem!" ao qual
Edna respondeu com um sorriso! Pelos vistos, anda a aprender a defender-se!
Com
toda esta confusão, nem demos conta de o autocarro parar. A professora
levantou-se do seu assento e pediu-nos para irmos saindo cautelosamente, por
ordem numérica, de forma serena, enquanto nos atropelávamos para sair, quase
aos trambolhões, voando sobre os dois degraus do autocarro.
Capítulo
IV
O pavilhão tinha um cheiro esquisito.
Cheirava a mofo e a humidade. Era um espaço enorme, claramente um complexo
desportivo, a precisar urgentemente de obras.
Reinava a confusão geral. Estavam lá
centenas de alunos. De súbito, um senhor pegou num microfone e, entre momentos
de chiadeira arrepiante (e eu, por azar, estava ao lado de uma coluna de som)
tentou dar algumas instruções:
- Os alunos concorrentes formem fila na
receção para receber uma T-shirt das Olimpíadas e um cartão de acesso ao espaço
onde vão decorrer as provas. Os alunos apoiantes dirijam-se às bancadas. Alunos
da mesma turma devem permanecer juntos. No final, não abandonem o recinto sem a
presença dos vossos professores…
Senti que ia abandonar a Edna à sua
sorte. A turma estava feliz apenas por ter tido dispensa das aulas para lhe dar
apoio, mas não ia verdadeiramente apoiá-la. Eu estava mesmo a torcer por ela…
desejava-lhe toda a sorte do mundo!
- Força Edna, és a maior!
- Ai, Carla, estou tão nervosa!
- Vai correr tudo bem! Vai lá para a
fila dos concorrentes…
E Edna lá foi, trémula, a olhar por
vezes para trás, a olhar para mim, como se os seus olhos me dissessem:
“Socorro! Tira-me daqui!”
No pavilhão estavam mesas dispostas em
fila, com uma divisória em contraplacado a dividi-las, como numa antiga
biblioteca. Os concorrentes começaram a sentar-se, procurando a mesa com o
mesmo número que lhes havia sido atribuído.
O senhor do microfone pedia silêncio nas
bancadas e dava mais algumas instruções:
- O tempo para a realização da prova
será de 90 minutos. Não há tolerância. Não podem usar corretor. Caso se
enganem, devem riscar e fazer de novo. Das bancadas, não pode vir qualquer
ajuda…
- Que cena! – disse o Tiago – nem que se
conseguisse ver alguma coisa daqui. O homem não deve bater bem. É muita
matemática naquela cabeça.
- Eu, mesmo que visse, não ajudava a
preta. – grunhiu o Diogo.
- Ai não ajudavas, não. Estúpido como tu
és! – disse-lhe, com vontade de lhe dar um empurrãozinho naquelas bancadas de
estrutura frágil.
O Diogo calou-se. Como qualquer bully,
ficava sem saber como reagir quando alguém lhe fazia frente. Quase que tive
pena dele. Quase…
- …só podem usar o lápis se assim
estiver indicado na prova. Não podem identificar-se em mais nenhum local da
prova sem ser no cabeçalho. Quaisquer comportamentos fraudulentos serão alvo de
sanção.
- O que quer dizer esta última regra? –
perguntou a Vanessa.
- Tipo, o pessoal tem de se comportar e
isso… - tentou explicar o Tiago.
- Isto é mesmo uma palhaçada. –
exclamou, de novo todo-senhor-do-seu-nariz,
o Diogo – nem proíbem o copianço.
A prova começou.
A Edna denunciava um nervosismo
evidente. Lia e relia a prova com atenção, mas não havia ainda começado a
escrever. O Diogo, claro, não se conteve:
- Está aflita. Não escreveram a prova em
pretoguês.
Para meu espanto, ninguém se riu. Acho
que todos já sentiam algum cansaço das piadas do Diogo, tendo a mesma reação de
quem ouve a mesma anedota por diversas vezes. Ou será que começava a haver
alguma empatia pela Edna? Será que, no fundo, os meus colegas (com exceção do
idiota do Diogo) queriam que a Edna ganhasse?
De súbito, a Edna começou a escrever.
Escrevia de rajada, com uma energia e uma segurança que me encheram de alegria.
Nem usou a folha de rascunho. E quando o tempo se esgotou e as provas foram de
imediato retiradas aos concorrentes, a Edna procurou-me com o olhar. Eu
levantei-me e gritei:
- Estou aqui, amiga!
A Edna acenou e sorriu. O Tiago também
lhe acenou; a Vanessa fez o mesmo e, pouco a pouco, quase todos os meus colegas
de turma acenaram à Edna e sorriram, genuinamente felizes pelo seu estado de
satisfação. O Diogo ainda sussurrou:
-
‘Tá tudo maluco!
Mas o Diogo tornara-se invisível. O que
ele simbolizava deixara de existir. O preconceito, o racismo, a mesquinhez,
tudo isso fora reduzido a zero, naquela competição matemática.
O senhor do microfone voltou a dar um ar
de sua graça. Para evitar o ruído desagradável do feedback, envolvera o
microfone num lenço aos quadrados. Parecia um vendedor de edredons numa feira.
- Agora, podem visitar o exterior das
nossas magníficas instalações, enquanto um júri composto por professores de
matemática procede ao apuramento dos resultados. O nome dos alunos apurados
para a segunda fase será divulgado dentro de 90 minutos.
O “exterior
das magníficas instalações” era um chão em cimento polvilhado por pastilhas
elásticas multicoloridas e dois canteiros de erva rasa e seca onde cães
incógnitos tinham deixado presentes pouco agradáveis.
- Hora e meia de seca! – disse a
Vanessa, desanimada. – Stora, podemos ir ao autocarro buscar o lanche?
- Sim, claro. Não se afastem uns dos
outros…
Além do lanche, todos trouxemos os nossos
tablets, Ipod’s, smartphones e todo o tipo de equipamento informático que se
pode imaginar. Eu trouxe o meu e-reader, pois andava a ler um texto muito fixe
chamado “A Palavra Mágica”, de Virgílio Ferreira.
Submersos no mundo cinerbético, o tempo
passou a voar. Iam anunciar os vencedores. Tivemos todos de voltar ao recinto.
Os concorrentes tinham aguardado numa sala à parte, onde lhes fora oferecido um
pequeno lanche.
De novo, a voz do “vendedor de
edredons”:
- E já temos os nossos vinte finalistas.
Os nomes serão ditos por ordem arbitrária: Pedro Jorge Neves, Ana Catarina
Silva, Maria Inês Correia, Raquel Alves dos Santos, Edna Noque,…
Mesmo com o apelido da Edna mal
pronunciado, a turma teve uma explosão de alegria. O Diogo abanava a cabeça,
inconformado. Não sei se o afetava mais a boa prestação da Edna ou a turma
estar a apoiá-la. Eu fiquei tão feliz e orgulhosa como se tivesse sido o meu
nome a ser chamado. Inevitavelmente, lembrei-me do conto que andava a ler: “Noque”, dissera estupidamente o homem do
microfone.
- É Edna Inoque, ó camelo! – gritou o
Tiago, que não era mau rapaz, mas não primava pela diplomacia. O homem não
ouviu, continuando a listagem dos vinte nomes.
Como estaria a sentir-se a Edna? A prova
seguinte iria ser ainda mais difícil…
Capítulo
V
Os vinte finalistas estavam dispostos em
mesas individuais. Nas bancadas predominava um silêncio nervoso. Foi anunciado
que a prova consistiria na resolução de problemas matemáticos. Estremeci! A
Edna tinha treinado pouco essa matéria. No entanto, eu continuava confiante nas
suas capacidades matemáticas e, sobretudo, na sua inteligência. Tinham apenas
meia hora para resolver três problemas, apresentando a solução e os cálculos
inerentes à resposta.
No relógio com a contagem decrescente,
os trinta minutos passaram a voar. A Edna olhava constantemente para o relógio.
Escrevia e roía as unhas, não me parecia nada segura.
Houve finalistas a concluir a prova
antes do término dos trinta minutos. Podiam fazê-lo e entregar a prova a um dos
jurados, pois isso encurtaria o tempo de correção. A Edna precisou da meia hora
e entregou a prova com um ar desolado. Agora era mais fácil ver-me na plateia,
pois só havia apoiantes de vinte concorrentes e muitos alunos nem tinham
regressado às bancadas, tendo ficado a jogar com o Ipad e, sobretudo os
casalinhos, a …a fazer outras coisas. A Edna olhou para mim e eu era capaz de
jurar que vi lágrimas teimosas a quererem libertar-se dos seus olhos.
Havia vinte jurados, por isso a correção
das provas foi rápida. Quando os nomes dos dez “resistentes” foram anunciados,
o nome “Edna” não constou. Paciência! Aqueles alunos eram os melhores dos
melhores e não se pode vencer sempre.
Passada uma eternidade de vinte minutos,
Edna veio, cabisbaixa, juntar-se a nós. Para meu espanto, o Diogo remeteu-se ao
silêncio. Fui ao encontro dela para a abraçar, mas ela estava inconsolável:
- Deixei-vos ficar mal a todos!
- Que tolice! Estamos orgulhosos de ti!
A professora também lhe deu um abraço:
- Edna, para nós, já és uma vencedora!
Preparávamo-nos para regressar ao
autocarro, quando o “vendedor de edredons” referiu que tinha algo a anunciar:
- Desculpem, mas há uma questão a
esclarecer. Lamentavelmente, um dos finalistas incorreu num comportamento
fraudulento, tendo esse facto sido provado e já admitido pelo infrator. Não
entrarei em mais detalhes, mas, como ditam as regras do concurso, o competidor
em questão fica automaticamente excluído, pelo que iremos anunciar, desde já, o
finalista que o irá substituir para o apuramento do campeão e do vice-campeão:
e a nova finalista é …Edna Inoque!
- É pá, que agora o homem até leu bem o
nome! – gritou o Tiago.
Edna estava incrédula. Eu não consegui
falar. Dei-lhe apenas um abraço apertado. Veio uma senhora com ar sério e disse
a Edna para a acompanhar.
Capítulo
VI
Esta prova era à porta fechada.
Consistia na resolução de equações de segundo grau. Os dois competidores a
acabar primeiro iriam disputar a vitória nas Olimpíadas. Para o vencedor seria
oferecido um cheque-livro no valor de 1000 euros e recursos relacionados com a
matemática para a escola a que pertencia; para o vice-campeão, um cheque-livro
de 500 euros e também materiais didáticos para a respetiva escola.
Para mim, o tempo passava devagar,
talvez pela ansiedade ou pela falta de coisas para fazer. Reparei que não era
apenas eu a lutar contra o nervosismo, visto que quase toda a turma parecia
respirar pausadamente, como se a tentar reduzir a ansiedade.
O ranger de uma porta foi ouvido em todo
o recinto, fazendo com que todos os presentes no pavilhão direcionassem o olhar
para lá.
-E já temos os nossos dois finalistas!
Depois de uns exaustivos 47 minutos de espera e de bastante ansiedade por parte
de todos nós, tenho o prazer de anunciar que os finalistas desta prova são...- informou
o senhor do microfone, mas não disse mais nada! Pareceu parar no tempo, pois
permaneceu quieto. Pelos vistos, quis criar um clima de tensão no público. Bem,
resultou! E não fui a única a reparar nisso, já que o Tiago interveio:
-Deixe-se lá de coisas e diga logo! O
homem 'tá cada vez pior!
- Ana Catarina Silva e Edna Inoque! -
esclareceu o "vendedor de edredons"! Toda a nossa turma gritou! Todos
estávamos felizes e orgulhosos pela Edna!
-Edna! Edna! Edna!...-gritávamos com os
braços sobrepostos nos ombros dos colegas do lado! E, pelo canto do olho,
reparei que Diogo também tinha um sorriso disfarçado na cara! Será que vi bem?
-Peço silêncio na plateia!- pediu o
"Noque", fazendo com que retomássemos os nossos devidos lugares -
Esta ronda final consiste numa junção de toda a matéria abordada nas provas
anteriores. Terão 60 minutos e a primeira a acabar terá uma vantagem de cinco
pontos sobre a adversária, caso a pontuação seja inferior a noventa e cinco por
cento. Boa sorte! Podem começar!
Foi-nos permitido ir para fora do
recinto, mas preferi ficar a apoiar a minha amiga assim como a minha turma.
Edna olhou para a prova e arregalou os olhos! Aquilo devia ser tão complicado!
Só esperava que ela mantivesse a calma! Já se tinham passado cinquenta e um
minutos e nenhuma das duas tinha terminado.
-Terminei! - informou a rapariga de
óculos, a tal Ana não-sei-quê!
“Parece que falei cedo de mais! Espero
que os cinco pontos não influenciem muito!” -pensei para mim mesma.
Passado apenas um minuto, Edna entregou
a prova e veio ter connosco:
-Ela tem cinco pontos de vantagem! E
agora? E se eu perder? A escola precisa do melhor equipamento!
-Relaxa Edna! Mesmo que não ganhes
continuas a ser um orgulho para nós!
-Obrigada, Tiago!
-Ele tem razão Edna! Mas não te
preocupes! Tu vais ganhar e mostrar a todos o quão inteligente és!
-Sim!- disseram todos em uníssono,
concordando comigo!
Sentámo-nos nas cadeiras a falar,
enquanto as provas eram corrigidas! O que não demorou muito tempo, pois o homem
do costume não tardou em dizer:
- As provas já foram corrigidas e tenho
a dizer que… com a vantagem de cinco pontos e uma prova avaliada com noventa e
três, Ana consegue uma pontuação total de noventa e oito pontos! Já Edna Inoque
conseguiu um total de...- e pronto! Deixou-nos no vácuo! Custa assim tanto
dizer um número?
-… de noventa e seis pontos! Parabéns às
participantes, principalmente à vencedora Ana Catarina Silva !
- Por um minuto? A Edna teve melhor
nota! As regras estão mal feitas! - protestou o Diogo, acrescentando: "'Tá
mesmo tudo maluco!"
Ao reparar no que tinha dito, o Diogo
sentou-se corado! Parece que alguém deixou de ser estúpido! A minha amiga
desceu do palco com o cheque de 500 euros e o saco de recursos que entregou à
professora. Esta abraçou-a e desejou-lhe os parabéns! Edna dirigiu-se a nós,
encolhendo os ombros:
-Desculpem!
Para sua surpresa, todos nos dirigimos a
ela e a abraçámos! Até o Diogo! Esta sorriu e sussurrou um emocionado obrigada!
Pode parecer cliché o que vou dizer, mas sinto-me na obrigação de o fazer! Lá
porque somos gordos, magros, altos, baixos, mais morenos, ou mais claros, todos
temos direitos! Neste caso foi Edna, mas podias ser tu! Todos fazemos falta,
todos nos complementamos. O círculo é diferente do quadrado, não sendo mais nem
menos importante no universo matemático. Coexistem, “coimportam”. Também nós,
nas nossas maravilhosas diferenças, temos a mesma dignidade de seres humanos.
A minha mãe sempre me disse «Não faças aos outros aquilo que não queres
que te façam a ti!»- e é bem verdade! Antes de fazeres qualquer comentário
ou ofensa pensa bem naquilo que tu irias sentir! Edna pode não ter vencido, mas
ganhou novos amigos. E bastou um sorriso na cara dela para um sentimento de “Missão cumprida!” nos invadir! E esse é
o gesto que completa o vazio no teu coração e no coração da pessoa! Então? E se
fosses tu?