ATO I
Cena
I
(cais de embarque; Anjo, Diabo e ajudante deste último em
cena)
Diabo (atarefado) – Vamos lá, meu ajudante!
Guarda tudo no porão
Prevejo muito ocupante
E o vento está de feição
Hoje vamos receber
Gente muito consumista
Companheiro - Mas irá a barca
encher?
Diabo - Vou dar-te já uma pista…
Olha bem em teu redor
O que vês? Consumidores!
Por isso aprende de cor:
Seremos seus malfeitores!
Companheiro - No Inferno, não há consumo?
Diabo - Nem com sumo, nem sem sumo!
Serão eles consumidos
Pelas labaredas, em fumo…
Mas diz-me, quem aí vem?
(ouve-se a música
“Money, Money, Money” dos Abba)
Cena
II
(entram em cena as consumistas, carregadas de sacas)
Companheiro - É a Lili Sem Vintém!
Diabo - E traz suas irmãzinhas
Aquelas só estavam bem
Quando andavam às comprinhas!
Lili - Boa tarde, vós quem
sois?
Diabo – O diabo, ao seu
dispor!
Lili – Ah!...O diabo, pois, pois
(olha-o de alto a baixo)
- Fica-vos mal essa cor!
E essa barca, para onde vai?
Diabo – P’ró Shopping do Bom Sucesso!
Lili - Leva-me nela, te peço….
Diabo – Venham todas, aqui entrai.
Cátia - Temos de atravessar o
rio?
Diabo – Um desvio nós faremos!...
Isabel
- (Aparte) Ai, que eu neste não me fio…
Diabo – Vamos p’rá Terra dos Demos
Lili - Cruzes, não quero eu ir
para lá
Nem uma montra, uma lojita…
Diabo
- Vamo’embora e pouca fita!
(dirigem-se à
barca do Anjo)
Lili - O Anjo me ouvirá!
Ó meu Anjo, queridinho!
Anjo
– Que desejais?
Lili – Deixa-me ir para o Céu!
Anjo
– Vós estais bem? Como ousais?
Gastavas todo o dinheiro
Em compras, sem piedade,
Dizendo ao teu companheiro
Que era para a caridade!
(as três dirigem-se de novo à
barca do Diabo)
Lili – P’ró Inferno, tem de ser!...
Isto é de perder o tino.
Vou p’rás
fogueiras arder
Mas com um top
Valentino!
Cena III
(vão
para a barca do Diabo; entretanto, ouve-se um cântico gregoriano e entra um
monge)
Monge – Esta barca…vai para o Céu?
Diabo (anuindo) -Vai para o seu…
destino
Monge – Mas o vosso não é o meu.
Diabo – Eu com este não atino!...
Monge –(para o público) Como vós, sou
pecador
Perfeito, só mesmo Deus!
Mas rogo a Nosso Senhor
Que me honre com os Céus!
Diabo (irritado) – Se é p’r’essa
conversação
“Deus”, Nosso Senhor”, os
“Céus”…
Ide àquela embarcação
Eu fico cá com os meus!...
Monge – Tu também já foste um Anjo!
Tua vida não foi sempre
esta…
Diz-me então: por que
caíste?
Diabo (trocista)- Devido ao peso na
testa!
Monge – Jesus! Que Deus te perdoe!
Diabo – Ó homem, vá! Eu até ajudo!...
Monge(para o público)-Que a todos Deus
abençoe!
(dirige-se
para a barca do Anjo)
Monge – Dizei-me, Anjo de Deus
Ireis vós para o
Paraíso?
Anjo - Meus domínios são os teus
A ti devo meu sorriso
Sempre em pobreza
andaste
Comias o que
colhias
Colhe hoje o que
semeaste:
Uma vida de humildade
Sem luxos, sem devaneios
No céu, é mesmo verdade:
Os últimos são os primeiros.
(entra na barca do Anjo)
Cena IV
(chega
um agente publicitário, especialista em publicidade enganosa; vem acompanhado:
uma bela jovem de nome Giselle; ouve-se, como música de fundo, “Eu Gosto É do
Verão” dos Fúria do Açúcar)
Agente – Ó da barca, quem está aí?
Diabo – Agente publicitário!
Como vão os reclames?
Sempre a enganar o otário…
Agente – O que importa é vender!
Se compram gato por lebre
Não sou eu quem vai perder…
Diabo - E essa Moça, quem é ela?
Agente - Uma amiga especial…
Diabo - E onde arranjaste tal bem?
Agente - Nas promoções de Natal!
Diabo - É assim mesmo, pois, pois…
Agente - O meu lema sempre foi:
Leve um e pague dois!
Com o dinheiro que ganhava
A ambos eu sustentava…
Giselle - Calmex! Não foi bem assim:
Eu garanti meu sustento;
Sou modelo; e este,sem mim,
Comia pão bolorento!
Realmente fiz
campanhas
P’rás promoções de Natal
Mas não fui nas
suas manhas!
Foi tudo
profissional….
(virando se para o agente publicitário)
Mentes com todos
os dentes!
Mesmo ao próprio
Belzebu!
Pois fica agora
sabendo:
a mim, não me
enganas tu!
Se te pões p´raí
a armar
Dou-te um pontapé
no….
Diabo: (interrompe) Ora vamos a
acalmar!
No Inferno terão
tempo
Para as contas
ajustar…
(virando-se para o agente)
Diabo - Vá entra, lá no Inferno
Há muito a quem enganar
Agente - Oh! Eu não quero estorvar
Diabo - Não estorvas nada,
então?
Em vida, a enganar o povo
Agora: p’ró caldeirão!
Vais dar um ótimo prato
É só seguir o contrato…
Agente - O quê? Que contas as
minhas…
Diabo - Amigo: tu é que não leste
Estava em letras pequeninas.
Cena V
(entra o Agente na barca do inferno; ouve-se, de seguida, um excerto de “A
Vida É Feita de Pequenos Nadas” de Sérgio Godinho e entra o Vendedor de banha da cobra
acompanhado pelo seu ajudante, a carregar produtos inúteis)
Vendedor (fala rapidamente) – Muito boa noite,
senhoras e senhores
Não estou aqui para enganar ninguém
Estou aqui apenas
para fazer o meu negócio…
Diabo(aparte) - Onde este está não há ócio…
Então, tens banha da cobra? Vendedor
- De cobras e de lagartos
De répteis novos e velhos…
Diabo - Lagartos? Não gosto muito…
Sou pelos Diabos Vermelhos
Vendedor - E então, que queres levar?
Diabo - Quero levar-te a ti!
Ora toca d’embarcar
Vendedor - Mas ainda nada vendi.
Vou ao Anjo apregoar…
(dirige-se à barca do Anjo)
Vendedor - Senhor Anjo, ouça-me
bem:
Se comprar não faz asneira:
Tenho CD’s do Saul
Do Toy, do Tony Carreira,
E latas de Redbull
Fica com sobressalentes
Se estragar uma asa…
Anjo (interrompe-o) - Não entras na minha casa!
( dirige-se de novo à barca do
Inferno)
Diabo - Faz como manda o barqueiro
No
Inferno, ao chegar
Comprar-te-ei um isqueiro…
Cena VI
(O vendedor entra na barca do inferno; ouve-se o som de
um órgão de tubos; vem um Cardeal)
Diabo – Sejais bem-vindo,
Eminência!
É uma honra, Cardeal…
Cardeal – Pois aqui sinto-me mal
Que raio de barca é esta?
Diabo – Esta é a barca infernal.
Cardeal – Não sou peixe dessa pesca.
Eu sempre imitei Cristo.
Diabo
(mexendo-lhe nas vestes) – Ele não usava disto.
E diz-me cá, ó bacano…
Era pertença de Cristo
O espólio do Vaticano?
Penso que andava descalço.
Ou com sandálias de tiras.
Cardeal
- Tu é que já desatinas.
A um só Deus adorei!
Diabo
– É verdade. Eu bem sei!
Adoravas o dinheiro…
Cardeal – Calai-vos, demo
barqueiro
E
chegai-vos para lá…
Diabo – Não era Buda ou Alá,
Nem
Maomé, Jeová
Era
só o dinheirinho…
Cardeal – Deves
estar mas é parvinho.
Diabo – Parvo, eu?! Troças de mim?
Cardeal – Por acaso sabes latim?
Diabo – Ah pois sei, ó: embarcati!
Cardeal – Só ando
de Maserati…
Diabo – Este aqui é mesmo ignóbil…
- Achava que ia pró inferno
A
acenar no papamóbil…
(O Diabo empurra o cardeal
para dentro da barca)
Cena V
(O cardeal entra para a barca do Inferno;
ouve-se “Toca O Telefone a Toda a Hora”, de Maria José Valério; entra um
operador de call center)
Operador
- Boa noite, desculpe incomodar.
Precisa de dinheiro,
de graveto, de pilim?
Diabo
- Este tem já que embarcar!
Operador - Há aí lugar para mim?
Sou da empresa Credifixe
Eu não minto, não perjuro
Emprestámos o dinheiro
A 100% de juro!
Diabo - E o mauzinho sou eu??
Operador - Pode pagar mais depressa
Ou pagar mais devagar…
É certo que paga o dobro
Mas só queremos ajudar…
Diabo - Com essa lábia enganosa
Nem eu te quero levar…
Mas toca lá
d’embarcar!
(canção Eu gosto é do verão –
Fúria do Açucar)
Surfista – Oi pessoal, nem
sei por que estou aqui
Veio uma onda gigante e os sentidos perdi
Sabem se por aqui perto,
Há uma loja de desporto?
Se houver vou já visitar
Na terra eu era fanático
Só
queria era comprar
Era
o fato, era a prancha
Enfim,
o equipamento (é interrompido)
Diabo
– Ora aguarda só um momento
Quanto dinheiro gastaste
Para o surf praticar?
Surfista
- Sei lá, eu perdi a conta
Era o meu pai a pagar!
Diabo
– A viagem é de graça
Vamos já a embarcar…
No inferno tens fogueiras
(Mas não são para surfar…)
Surfista - Que pena, um fato tão
caro
E
vai ser para queimar!
Todos - Este Auto, com certeza
Que tem lição de moral:
Para não entrar em demência
Não gaste com imprudência
Não faça a si próprio mal!
O Inferno não existe
Mas gastar mais do que tem