Muitos parabéns à Maria Fernanda Fernandes, do 8ºA e felicitamos todos os participantes!!!
Eis o conto vencedor:
...em Figura de Gente
A minha mãe ensinou-me o poder das ervas e das plantas. Vivemos sempre as duas no meio da floresta bem afastada do povoado; a floresta era escura (até mesmo de dia), as árvores cobriam praticamente tudo que havia por ali, morávamos numa cabana de madeira, simples, mas robusta, que o meu pai, que eu nunca cheguei a conhecer, construíra antes de morrer. Era lenhador. Morreu quando eu era bebé, não tenho recordações dele…
A minha mãe morreu há pouco tempo, dela lembro-me bem: meiga, leve, parecia fazer parte da natureza e conhecia a natureza muito bem. Camomila para os nervos, cidreira para ajudar a dormir, tília para pensamentos serenos, aloé vera e clara de ovo para curar danos à pele…
Assim, quando o rapaz que se tinha queimado (a brincar com um archote do castelo do seu pai) veio ter comigo, foi com naturalidade que parti as cascas de dois ovos e derramei as claras dos ovos na sua queimadura, que era ligeira. Sentiu logo alívio e a queimadura melhorou. Achei que tinha feito algo de bom. Continuei com essa opinião até me baterem à porta e a partirem, sem me darem tempo para a abrir.
Arrastaram-me pelo braço. Eu andava e tropeçava no vestido, cheia de medo. Sabia quem eram aqueles homens. Estavam ao serviço do Inquisidor.
A Santa Inquisição de Santa não tinha nada. Entrei, empurrada, numa sala com paredes de pedra e crucifixos.
- É esta a bruxa? – perguntou o Inquisidor.
Era um homem alto de cabelos loiros, olhos castanhos e rosto fino, parecia enojado com minha presença (ou talvez secretamente interessado). O seu rosto era quase indecifrável, sem nenhuma expressão ou sentimento.
- É esta. – respondeu o homem que me empurrou.
- Deixem-nos a sós.
Quem me levou saiu.
- Então praticas feitiçaria para curar feridas e dores do corpo? – perguntou o Inquisidor, que tinha uma voz esganiçada e fraca.
- Não, eu uso ervas e plantas. – respondi, cheia de medo.
- As ervas e as plantas são para estar onde Deus as deixou, e assim é também com as feridas e as dores. O sofrimento purifica e só Deus tem o poder de curar.
- Eu só tento dar algum alívio.
- Interferes nos planos de Deus. Quem és tu, criatura miserável, para achares que podes meter-te no que Deus determinou? – a voz mudou completamente, era grave e forte.
- Talvez as minhas ações também façam parte do plano de Deus. Deus é Amor e…
- Atreves-te a responder-me? – mesmo o pânico em que eu estava não me impediu de pensar que era estranho alguém se zangar tanto, só porque eu tinha respondido a uma pergunta.
- Pensei que era desrespeitoso deixar uma pergunta sem resposta.
- És uma bruxa! Eu sei reconhecer uma quando as vejo. Não me enganas. És uma bruxa! A tua mãe também era e arde agora no inferno como ardeu aqui por minha ordem!
- Disseram-me que a minha mãe morreu de doença súbita!
- Arder numa fogueira não é uma doença e garanto que não é nada súbito. Demora o seu tempo… - vi alegria no seu olhar.
– Bem…, saberás por ti mesma! Vou chamar o escrivão para que se faça o auto.
- Eu não fiz nada de mal… Por favor, não me mande matar! – o pânico era tanto que eu é que queria morrer de doença súbita naquele local, ali mesmo, naquele instante e evitar todo o sofrimento que me esperava.
- Achas a tua vida assim tão valiosa?
- Acho que não mereço morrer.
- Morrer é uma questão de tempo.
- Não mereço morrer queimada, amarrada a um tronco, numa fogueira maldita!
- O fogo vai purificar-te. A tua alma ainda pode ter a salvação.
- De mim, só o meu corpo conheço, e o pensamento, e os sentimentos, como o medo que toma conta de mim agora.
- Não acreditas na alma?! – gritou assustadoramente.
- Não sei, já não sei nada… - estava completamente apavorada.
De repente, acalmou-se. Falou com a voz frágil do início.
- Há uma maneira…
- De quê?
- De não arderes na fogueira.
- Qual? Qual? – perguntei, em desespero.
- Se não acreditas na alma não lhe dás valor, certo? – perguntou, com voz de criança mimada.
Não sabia o que dizer, fiquei em silêncio.
De repente, em tom sério, trovejou:
- Se não dás valor à alma, entrega-ma!!
- Como assim?
- Assinas um contrato. A tua alma passa a pertencer-me por toda a eternidade. Ou preferes o calor da fogueira?
Naquele momento, para meu terror, a cara do Inquisidor ficou em chamas, só conseguia ver uns olhos completamente pretos e um sorriso de dentes aguçados.
- Tu …tu és…
- O anjo caído, Lucifer, o diabo, … escolhe o nome. Sou. Sou um de muitos. Legiões que habitam nesta terra. Sou um caçador de almas.
O rosto tinha voltado ao que era antes. O meu coração parecia que me rebentava no peito.
- Mas… tu usas um crucifixo! Esta sala está cheia de crucifixos! - o desespero aumentava a cada segundo… eu poderia tentar fugir, mas seria inútil naquele momento.
- Eu gosto de crucifixos… Nos crucifixos há um homem em sofrimento. Ou andamos a fazer bem o nosso trabalho ou os homens são mais cruéis do que nós. Essa ideia de pregar um homem numa cruz... – ficou uns segundos a pensar – acho que não foi nenhum demónio que a teve.
- Foi, com certeza. Só pode ter sido um demónio. Mesmo que tenha nascido homem.
- Já vai longa a conversa. Assinas o contrato de tua livre e espontânea vontade?
- Sou obrigada a assinar de livre e espontânea vontade.
Sorriu.
- Sentido de humor. Não é habitual. Não nesta sala.
Retirou das vestes um pergaminho. Desenrolou-o.
-Eu não tenho escolha, não é mesmo?
-Você tem escolha: ou me dá sua alma ou morrerá queimada na fogueira, a escolha é totalmente sua, as consequências serão inevitáveis.
Sentia que meu coração ia saltar e explodir, o desespero aumentava a cada segundo.
- Está bem…,eu te dou-te a minha alma.
-Ótimo - o "homem" deu seu sorriso malicioso e esticou sua mão em minha direção...
Eu hesitei por alguns segundos, senti meu corpo estremecer, tive de me apoiar numa pequena mesa, onde estava uma cruz, sem o corpo de Cristo e com as extremidades afiadas…a criatura pegou no meu braço.
- Foi a melhor escolha!
Senti meu corpo formigar e estremecer, mas antes que aquele ser pudesse fazer algo comigo ou com a minha alma, ele caiu estrondosamente no chão…depois houve silêncio por alguns segundos, até que eu olhei para o chão e confirmei: ele estava caído, inerte… mas... o que havia acontecido?!
Após alguns segundos tentando lembrar-me, finalmente as memórias voltaram…eu havia feito aquilo, ao olhar para baixo novamente percebi a cruz afiada como um punhal bem seguro na minha mão cheia de sangue… tudo ficou com a cor vermelho-sangue.
Depois, num flash, tudo me veio à memória: aquele crucifixo tinha sido levado por mim! Ninguém reparou em mais um numa sala repleta deles. Tinha sido uma oferta que a minha mãe havia me dado antes de morrer: lembro-me exatamente de suas palavras:
-”Esse crucifixo irá proteger-te de qualquer mal que vier de encontro com o seu caminho, minha querida, use com sabedoria, pois seu poder não durará para sempre”...
Uma cruz selada com o amor de uma mãe foi capaz de matar Lúcifer? Pelos vistos, sim. Nem ao menos tive tempo de pensar quando ouvi batidas na porta da sala: eram os guardas! Acharam estranha a demora do “padre”, as batidas continuaram ainda mais fortes a cada segundo…
- Ei! O que está acontecendo aí?!- um dos guardas gritou do lado de fora, tentando violentamente abrir a porta.
O meu coração disparou, eu olhei em volta procurando alguma saída, só havia uma pequena janela, corri até ela e abri-a devagar e, com muita dificuldade, consegui sair.
Antes de conseguir sequer respirar, ouvi o barulho da porta sendo quebrada e comecei a correr o mais rapidamente que pude para o mais longe possível daquela maldita masmorra...
Estive quase a vender a alma ao diabo… Consegui evitá-lo. Outros, infelizmente, não conseguem…