quinta-feira, 3 de novembro de 2022

CONCURSO CONTOS DE ASSUSTAR - Já temos vencedora...

  Muitos parabéns à Maria Fernanda Fernandes, do 8ºA e felicitamos todos os participantes!!!  


 
Eis o conto vencedor:

                                       ...em Figura de Gente

  A minha mãe ensinou-me o poder das ervas e das plantas. Vivemos sempre as duas no meio da floresta bem afastada do povoado; a floresta era escura (até mesmo de dia), as árvores cobriam praticamente tudo que havia por ali, morávamos numa cabana de madeira, simples, mas robusta, que o meu pai, que eu nunca cheguei a conhecer, construíra antes de morrer. Era lenhador. Morreu quando eu era bebé, não tenho recordações dele… A minha mãe morreu há pouco tempo, dela lembro-me bem: meiga, leve, parecia fazer parte da natureza e conhecia a natureza muito bem. Camomila para os nervos, cidreira para ajudar a dormir, tília para pensamentos serenos, aloé vera e clara de ovo para curar danos à pele… 
 
    Assim, quando o rapaz que se tinha queimado (a brincar com um archote do castelo do seu pai) veio ter comigo, foi com naturalidade que parti as cascas de dois ovos e derramei as claras dos ovos na sua queimadura, que era ligeira. Sentiu logo alívio e a queimadura melhorou. Achei que tinha feito algo de bom. Continuei com essa opinião até me baterem à porta e a partirem, sem me darem tempo para a abrir. 
 
    Arrastaram-me pelo braço. Eu andava e tropeçava no vestido, cheia de medo. Sabia quem eram aqueles homens. Estavam ao serviço do Inquisidor. A Santa Inquisição de Santa não tinha nada. Entrei, empurrada, numa sala com paredes de pedra e crucifixos. 
 
     - É esta a bruxa? – perguntou o Inquisidor. Era um homem alto de cabelos loiros, olhos castanhos e rosto fino, parecia enojado com minha presença (ou talvez secretamente interessado). O seu rosto era quase indecifrável, sem nenhuma expressão ou sentimento.
 
    - É esta. – respondeu o homem que me empurrou.
 
    - Deixem-nos a sós. 
 
Quem me levou saiu. 
 
    - Então praticas feitiçaria para curar feridas e dores do corpo? – perguntou o Inquisidor, que tinha uma voz esganiçada e fraca. 
 
    - Não, eu uso ervas e plantas. – respondi, cheia de medo. 
 
     - As ervas e as plantas são para estar onde Deus as deixou, e assim é também com as feridas e as dores. O sofrimento purifica e só Deus tem o poder de curar.
 
         - Eu só tento dar algum alívio.
 
     - Interferes nos planos de Deus. Quem és tu, criatura miserável, para achares que podes meter-te no que Deus determinou? – a voz mudou completamente, era grave e forte. 
 
    - Talvez as minhas ações também façam parte do plano de Deus. Deus é Amor e… 
 
    - Atreves-te a responder-me? – mesmo o pânico em que eu estava não me impediu de pensar que era estranho alguém se zangar tanto, só porque eu tinha respondido a uma pergunta.
 
     - Pensei que era desrespeitoso deixar uma pergunta sem resposta. 
 
    - És uma bruxa! Eu sei reconhecer uma quando as vejo. Não me enganas. És uma bruxa! A tua mãe também era e arde agora no inferno como ardeu aqui por minha ordem! 
 
    - Disseram-me que a minha mãe morreu de doença súbita! 
 
   - Arder numa fogueira não é uma doença e garanto que não é nada súbito. Demora o seu tempo… - vi alegria no seu olhar.
 
     – Bem…, saberás por ti mesma! Vou chamar o escrivão para que se faça o auto. 
 
     - Eu não fiz nada de mal… Por favor, não me mande matar! – o pânico era tanto que eu é que queria morrer de doença súbita naquele local, ali mesmo, naquele instante e evitar todo o sofrimento que me esperava.
 
     - Achas a tua vida assim tão valiosa? 
 
     - Acho que não mereço morrer.
 
     - Morrer é uma questão de tempo. 
 
    - Não mereço morrer queimada, amarrada a um tronco, numa fogueira maldita! 
 
    - O fogo vai purificar-te. A tua alma ainda pode ter a salvação. 
 
    - De mim, só o meu corpo conheço, e o pensamento, e os sentimentos, como o medo que toma conta de mim agora. 
 
    - Não acreditas na alma?! – gritou assustadoramente. 
 
   - Não sei, já não sei nada… - estava completamente apavorada. De repente, acalmou-se. Falou com a voz frágil do início. 
 
    - Há uma maneira… 
 
    - De quê? 
 
    - De não arderes na fogueira. 
 
    - Qual? Qual? – perguntei, em desespero. 
 
    - Se não acreditas na alma não lhe dás valor, certo? – perguntou, com voz de criança mimada. 
 
        Não sabia o que dizer, fiquei em silêncio. 
 
    De repente, em tom sério, trovejou:
 
     - Se não dás valor à alma, entrega-ma!!
 
     - Como assim? 
 
    - Assinas um contrato. A tua alma passa a pertencer-me por toda a eternidade. Ou preferes o calor da fogueira? 
 
    Naquele momento, para meu terror, a cara do Inquisidor ficou em chamas, só conseguia ver uns olhos completamente pretos e um sorriso de dentes aguçados.
 
     - Tu …tu és… 
 
    - O anjo caído, Lucifer, o diabo, … escolhe o nome. Sou. Sou um de muitos. Legiões que habitam nesta terra. Sou um caçador de almas.
 
     O rosto tinha voltado ao que era antes. O meu coração parecia que me rebentava no peito. 
 
    - Mas… tu usas um crucifixo! Esta sala está cheia de crucifixos! - o desespero aumentava a cada segundo… eu poderia tentar fugir, mas seria inútil naquele momento.
 
     - Eu gosto de crucifixos… Nos crucifixos há um homem em sofrimento. Ou andamos a fazer bem o nosso trabalho ou os homens são mais cruéis do que nós. Essa ideia de pregar um homem numa cruz... – ficou uns segundos a pensar – acho que não foi nenhum demónio que a teve.
 
     - Foi, com certeza. Só pode ter sido um demónio. Mesmo que tenha nascido homem. 
 
     - Já vai longa a conversa. Assinas o contrato de tua livre e espontânea vontade? 
 
      - Sou obrigada a assinar de livre e espontânea vontade. 
 
Sorriu. 
 
    - Sentido de humor. Não é habitual. Não nesta sala. Retirou das vestes um pergaminho. Desenrolou-o. 
 
    -Eu não tenho escolha, não é mesmo?       
 
   -Você tem escolha: ou me dá sua alma ou morrerá queimada na fogueira, a escolha é totalmente sua, as consequências serão inevitáveis. 
 
    Sentia que meu coração ia saltar e explodir, o desespero aumentava a cada segundo. 
 
- Está bem…,eu te dou-te a minha alma. 
 
     -Ótimo - o "homem" deu seu sorriso malicioso e esticou sua mão em minha direção...
 
    Eu hesitei por alguns segundos, senti meu corpo estremecer, tive de me apoiar numa pequena mesa, onde estava uma cruz, sem o corpo de Cristo e com as extremidades afiadas…a criatura pegou no meu braço. 
 
    - Foi a melhor escolha!
 
     Senti meu corpo formigar e estremecer, mas antes que aquele ser pudesse fazer algo comigo ou com a minha alma, ele caiu estrondosamente no chão…depois houve silêncio por alguns segundos, até que eu olhei para o chão e confirmei: ele estava caído, inerte… mas... o que havia acontecido?! 
 
    Após alguns segundos tentando lembrar-me, finalmente as memórias voltaram…eu havia feito aquilo, ao olhar para baixo novamente percebi a cruz afiada como um punhal bem seguro na minha mão cheia de sangue… tudo ficou com a cor vermelho-sangue. 
 
    Depois, num flash, tudo me veio à memória: aquele crucifixo tinha sido levado por mim! Ninguém reparou em mais um numa sala repleta deles. Tinha sido uma oferta que a minha mãe havia me dado antes de morrer: lembro-me exatamente de suas palavras: 
 
    -”Esse crucifixo irá proteger-te de qualquer mal que vier de encontro com o seu caminho, minha querida, use com sabedoria, pois seu poder não durará para sempre”...
 
 
     Uma cruz selada com o amor de uma mãe foi capaz de matar Lúcifer? Pelos vistos, sim. Nem ao menos tive tempo de pensar quando ouvi batidas na porta da sala: eram os guardas! Acharam estranha a demora do “padre”, as batidas continuaram ainda mais fortes a cada segundo…
 
     - Ei! O que está acontecendo aí?!- um dos guardas gritou do lado de fora, tentando violentamente abrir a porta. O meu coração disparou, eu olhei em volta procurando alguma saída, só havia uma pequena janela, corri até ela e abri-a devagar e, com muita dificuldade, consegui sair. 
 
    Antes de conseguir sequer respirar, ouvi o barulho da porta sendo quebrada e comecei a correr o mais rapidamente que pude para o mais longe possível daquela maldita masmorra... 
 
     Estive quase a vender a alma ao diabo… Consegui evitá-lo. Outros, infelizmente, não conseguem…