quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Rubrica: Bibliografia pedagógica na biblioteca escolar

Recomendação nº 4


Sete cartas a um jovem filósofo 
Agostinho da Silva 


    “Do que você precisa, acima de tudo, é de não se lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles forem meus, não seus.”
 
Agostinho da Silva, in “Sete… “. 

    Esta semana trago um livro de um autor muito especial, do filósofo, ou mais propriamente, do polímata Agostinho da Silva. Este português foi um verdadeiro homem dos sete ofícios (intelectuais e manuais que também prezava) dadas as artes, ciências e filosofia sobre as quais escreveu, refletiu, dominou, agiu e divulgou. Para uma visão mais ou menos asséptica dos domínios em que Agostinho se envolveu a Wikipédia serve. Para uma visão mais pessoal, aprofundada e apropriada do que significou Agostinho no mundo do pensamento lusófono – envolvendo principalmente Portugal e o Brasil – aconselho vivamente um documentário extremamente interessante chamado “Agostinho da Silva - Um pensamento vivo”. * 

    Na década de 90 do século XX, Agostinho, já com idade relativamente avançada, tornou-se famoso na esfera pública através de inúmeras entrevistas que deu na televisão onde expôs o seu pensamento fora do comum, de invulgar alcance e interesse. Foi mesmo moda, algo de que se apercebeu a dada altura e lastimou. No entanto, pode dizer-se que fora dos estudiosos e daqueles que mais se dedicam aos assuntos culturais, Agostinho não era conhecido antes dessa década e a sua obra e pensamento têm sido relativamente esquecidos. Em Portugal, antes da sua partida para o Brasil na década de 40 dado o sufoco a que vinha sendo submetido pelo regime opressor fascista, a sua obra de divulgação cultural e de edição bibliográfica foi enorme. Já no Brasil, o seu papel foi de um alcance incomum. Fundou várias universidades, sempre num registo de aliança com a intervenção na vida do povo brasileiro. As preocupações com a melhoria da vida do povo, do combate às secas, da dotação de quadros médicos e de outras valências sociais foram suas preocupações de formação nas regiões onde viveu. Nas suas próprias palavras, cultura começava no cozinhar e noutras tarefas básicas sobre as quais se erguiam outras formas consideradas mais elevadas de cultura. E também, ainda nas suas palavras ditas em entrevista, a cultura distinguia-se logo pelos “3 S’s: Sustento; Saber; Saúde.” Agostinho soube também envolver – e fazer crescer - à sua volta, personalidades que mais tarde tiveram um papel fulcral no mundo da cultura brasileira de que damos como exemplo, entre outros, os irmãos Maria Bethânia e Caetano Veloso e o cineasta Glauber Rocha. 

    O livro “Sete cartas a um jovem filósofo”, é um livro de fácil e agradável leitura, provavelmente porque o autor o pretende didático. Não que lhe faltem alguns momentos de dificultosa leitura, pela invocação de conceitos não habituais. O jovem filósofo a quem as cartas são dirigidas talvez não seja um jovem em concreto, mas antes qualquer ser humano que erija o pensamento a voos mais altos do que a simples vivência no mundo. Neste livro, Agostinho utiliza um pseudónimo – José Kertchy Navarro – que é aquele que escreve as cartas e aconselha. Agostinho, na parte final do livro, elabora alguns documentos onde dá conta da biografia, inventada, da personalidade deste pseudónimo. 

    “Sete… “é, de facto, um livro de um filósofo, mas também um livro de um poeta, ou mais propriamente de um filósofo poeta: questiona, mais do que afirma, reflete, muito mais do que apresenta soluções; imagina, mais do que lança hipóteses concretas e embarca no poder da palavra sugestiva mais do que na elaboração de conceitos. E de forma tão própria a Agostinho, combina no mesmo plano duas ou mais possibilidades no mesmo nível de eficácia ou de insucesso, a partir daquilo que delas pode resultar em abstrato. 

    Neste livro, como já dissemos Agostinho utiliza o poder de um pseudónimo, não se sabendo se se esconde ou se se revela nele. Afinal de contas, naquilo que conta de José Navarro relativamente às suas particularidades biográficas, Agostinho não tem contemplações ao apontar os seus defeitos mais ou menos evidentes ou ocultos perante qualquer crivo crítico. 

    Agostinho, em todos os seus escritos e neste de forma muito explícita, por um lado, afirma não querer convencer seja quem for. No entanto, não se coíbe de criticar os caminhos que vê serem adotados pelos outros e principalmente por aqueles que lhe são mais próximos (os tais jovens aprendizes de filósofos que o consideravam de mestre, algo que ele recusava como estatuto). Não deixa também de mostrar a sua dialética de opções pessoais julgando-as preferíveis a outras que descreve. A sua defesa relativamente à não tentativa de convencer é a sua afirmação constante de não considerar ser em si próprio um exemplo. Em “Sete…” Agostinho, na escrita de Navarro, pratica a arte de dar conselhos a alguém que preza e a quem reconhece amplas potencialidades. Por isso, não é parco nas críticas, nem tem receio de ferir o seu alvo – o jovem aspirante a filósofo – de modo a conseguir que ele fuja aos caminhos da facilidade, do enlevo fácil ou dos ofícios para os quais não possui vocação. 

    Agostinho - ou Navarro, pensamos que os dois, - não deixa de ser uma caixa de surpresas filosóficas. Numa perspetiva alinha com Kant na negação do conhecimento da “coisa em si”, mas, ao mesmo tempo, afirma que estuda com grande vigor as ciências existentes. Este é um livro de um filósofo consagrado não na academia, mas na vida de todos os dias e de todas as tarefas. É isso o que representa Agostinho da Silva neste livro. Um filósofo aberto ao mundo e aos outros, sem transigir com as facilidades nem ocultando os seus pensamentos mais agudos. Nele, transparece sobretudo, o que é capaz de confessar a mais estrita humildade perante aqueles que aparentemente detêm menor poder, menor conhecimento ou uma autoconsciência menos aguçada. 

Henrique Santos 
2023-12-06